Não seria uma vergonha considerarmos menos valiosas as
coisas que Deus tanto estima, comparadas com os prazeres deste mundo, que depressa se desfazem como fumaça?
1 INTRODUÇÃO.
Diante da esmagadora avalanche de opções de entretimento que nos chega por meio de filmes, parques temáticos, jogos eletrônicos, computadores, internet, circos, restaurantes, esportes, arte, músicas, teatro e a poderosa televisão; poucos conseguem perceber no meio de tanta cor, prazer sensitivo, luzes e risos abertos, qualquer lampejo de ameaça à verdadeira vida.
Entretenimento é sempre visto como um terreno, senão amigável, no mínimo neutro; mas nunca ameaçador.
Esse estudo visa estimular o espírito crítico e pensante presente em todo cristão que se alimenta da Palavra e a pratica (Hb 5.14) à luz do crescimento assombroso do mundo do entretenimento.
Queremos, portanto, ir ao coração da questão. Isso inclui reconhecer a complexidade do assunto, ou seja, evitar qualquer tipo de legalismo, atitude acrítica, improdutiva, simplista, injusta e superficial. Tal postura costuma criar caricaturas reducionistas; fruto do gosto pessoal e/ou interesse próprio e não de uma meditação submissa à revelação bíblica.
Além disso, a ausência do espírito crítico
"produz uma inclinação poderosa de apropriação das crenças, mesmo das
básicas, de uma cultura que tem se secularizado a uma velocidade tremenda por
gerações”.
2 DEFINIÇÃO.
Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, "entreter" significa "distrair, para desviar atenção; divertir com recreação, servir de distração". O Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro o define como "iludir, suavizar, aliviar". Etimologicamente, "entreter" vem do latim intertenere, "ter entre"; refere-se, pois, ao intervalo entre duas ocupações. Porém, não é o mesmo que "ausência de ocupação", mas uma ocupação suave, ilusória, recreativa, que distrai.
Na análise de um vocábulo é imprescindível entendermos não somente o que ele significa, mas também o que não denota, pois deste modo evitamos ambigüidades. O lado negativo de "entreter" é o "não meditar". Ou seja, entreter não denota reflexão. Entreter não é somente divertir-se, mas divertir-se com distração, ou seja, trata-se de uma fuga e/ou uma ilusão. O substantivo "entretenimento" parece vir do espanhol com influência do inglês entertainment e surge como diferenciado de arte e cultura, pois, diferente desses, não exige esforço mental.
Reconheço que o significado de um vocábulo não vem de cima para baixo, como se todas as pessoas lessem dicionários antes de usar as palavras. Não se pode negligenciar o uso da palavra no cotidiano como fonte de significado. Portanto, reconhecemos que nem todas as pessoas usam a palavra "entretenimento" pensam exatamente no que aqui analisaremos. Muitos a usam como sinônimo de "divertimento", "alegria" e "lazer". O que não é nosso caso. A palavra mais próxima de entretenimento nessa obra é "distração". Segue nossa definição: Entretenimento é a atividade prazerosa que distrai e ilude movida por uma fuga da realidade opressora das preocupações existenciais.
3 ENTRETENIMENTO, ARTE E CULTURA.
Talvez uma das relações mais delicadas no entendimento do entretenimento está na sua relação com a cultura e a arte. A complexidade das atividades, efeitos, manifestações e estilos envolvidos no entretenimento é tão abrangente que não se pode categorizar atividades como essencialmente culturais e outras como essencialmente entretimento.
Historicamente o conceito de entretenimento surge como um diferenciador da cultura e da arte [3]. Particularmente acredito na distinção, porém, tal categorização não pode ser rápida e abrangente assim como acontece com os que defensores de uma visão unificada em que entretenimento é igualado com arte e cultura. Temos manifestações culturais na música da mesma maneira que temos entretenimento nessa mesma forma de arte. O mesmo pode ser dito sobre a literatura, pintura etc.
A questão aqui é: "Como diferenciar a arte e a cultura mais edificantes do entretenimento destinado à diversão e o lixo cultural mais grotesco que preenche espaços em programas de TV, revista, livros e jornais sensacionalistas ou simplesmente ordinários?"[4].
Gonzaga Trigo está certo ao considerar que "essa não é uma discussão fácil, e as tentativas de simplificá-la podem facilmente gerar argumentos autoritários ou elitistas" [5]. Por outro lado, ele é igualmente simplista quando opta pela unificação dos conceitos. A tendência de Trigo e outros de igualar cultura e entretenimento é melhor entendida à luz da cultura da tolerância, da inclusão e do relativismo pós-moderno que não permite que os estudiosos julguem, discriminem ou rotulem. No mundo pós-moderno, julgamento fica para os preconceituosos e elitistas.
O Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD) reflete bem essa tendência unificadora. O Programa tem dificuldades em saber se filmes ou produtos audiovisuais são bens culturais ou simples entretenimento.
"O documento da ONU faz sérias ressalvas contra essa divisão, entendendo que cinema, televisão, rádio, e outras expressões da mídia eletrônica e imprensa são 'cultura'" [6].
O preço da unificação e/ou da igualdade de significado é alto. Ela iguala "Florentina", sucesso do Palhaço Tiririca, com as sinfonias de Beethoven; bem como não diferencia Dostoiévisk, John Bunyan e Cervantes das piadas sujas de alguns programas de comédia. Os defensores da unificação asseguram: "são igualmente formas de arte e cultura".
Um dos diferencias da cultura e o entretenimento é que o último é um espetáculo para a distração da massa [7]. E, diferente dos espetáculos dos circos romanos, hoje esse é direcionado por questões quase que exclusivamente mercadológicas. Entretenimento tem que vender; e vender muito.
Marilene Chauí nos alerta que a massificação ou a industrialização da cultura resultou no oposto proposto pela arte da cultura – o pensar. A razão é que a indústria cultural:
[…] define a Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não "vende". Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos [8].
Entretenimento, portanto, é contrário à meditação e ao pensamento profundo. Assim, qualquer leitura (de palavras ou imagens) que não desafia nosso intelecto é entretenimento. Por outro lado, toda a vida cristã é descrita como um culto racional (Rm. 12.1). Entenda-se "racional" como "atitude interna" em contraste com uma adoração somente externa [9].
Continuamos com as colocações de Chauí:
Além disso, como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento, a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque não exige de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica, perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia. Em suma, não nos pede o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las, amá-las, criticá-las, superá-las. A Cultura nos satisfaz, se tivermos paciência para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. A mídia nos satisfaz porque nada nos pede, senão que permaneçamos sempre infantis [10].
As palavras de Chauí soam estranhas visto que arte e cultura hoje não estão diretamente ligadas à educação como pensavam os filósofos clássicos e os cristãos medievais bem como não preza pela originalidade como na modernidade, que entendia cultura como atitude contra o status quo. Hoje, "a arte tem como finalidade a própria arte" [11].
Contudo, não podemos nos iludir que a ausência de cultura ou desafio intelectual no entretenimento faz dele um terreno neutro. Há uma filosofia e uma ideologia manipulando o grande parque de diversão do entretenimento. O elogio do deboche, por exemplo, visto em grande parte da comédia brasileira, propõe um estilo de vida cínica. A propaganda é um exemplo claro de influência. Enquanto entretém, ela pode ridicularizar o gênero masculino como aquele que troca uma mulher bonita e dedicada pela TV por assinatura; ou como um porco que aproveita os feriados para não tomar banho; ou ainda como um "pau-mandado" sem qualquer bom senso. Ou seja, embora não nos leve a pensar, o entretenimento tem sim uma filosofia que a rege. É pobre, por que é levada pela onda do momento; mas ainda há filosofia.
Como entretenimento e cultura usam dos mesmos meios, seria simplista e reducionista demais alistar formas de entretenimento e de cultura. Enquanto forma elas se igualam; enquanto propostas diferem. Assim, não é que a música é entretenimento e a literatura é cultura ou vice-versa. Mas que o entretenimento usa da música assim como a cultura. Ambas podem ser danosas. Porém, um vôo monástico não é uma solução. Somos denominados sal e luz desse mundo (Mt. 5.13-14). "O melhor modo de repelir uma cosmovisão ruim é oferecendo uma boa, e os cristãos devem deixar de criticar a cultura e passar a criar cultura" [12].
4 ENTRETENIMENTO, TEMPO E DESCANSO.
O Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro também define entretenimento como "ocupação". É simples de entender; enquanto estamos distraídos, ocupamos nosso tempo. Entretenimento não é o mesmo que descanso. Muito menos ócio contemplativo e/ou produtivo. É ocupação que distrai e ilude.
Aqui vale uma palavra sobre trabalho e entretenimento. Os números parecem apresentar uma matemática contraditória. Trabalha-se mais hoje do que no passado. Entretanto, do outro lado, o mercado do entretenimento só cresce. Como conciliar, então? O que acontece é que, com o pouco de tempo que se têm (feriados, happy hour, finais de semana), as pessoas se divertem com mais intensidade do que no passado. Além disso, o entretenimento tem ganhado tanto espaço que a divisão trabalho e entretenimento é, no final das contas, artificial. Há muito que o entretenimento invadiu a esfera do trabalho e da educação. Hoje, trabalha-se enquanto se distrai.
O fato é que "não estamos vivendo numa era contemplativa"
[13]. Vivemos a era de Marta (Lc 10.38-42); sempre ocupados e negligenciando as coisas mais importantes. Estamos sempre conectados a aparelhos eletrônicos (TV, computadores, celulares, games), fazendo e agindo. Horton descreve bem essa realidade:
Não se pode deixar de notar a inquietude do homem e da mulher ocidental contemporâneos, uma inquietude observada até mesmo (muitas vezes mais óbvia até) durante períodos de lazer. Por uma variedade de razões, muitos encherão esses momentos com tantas diversões, troféus, brinquedos e recreações que freqüentemente escutamos "Agora preciso de um descanso e recreações após as minhas férias" [14].
Hoje descanso é algo perturbador, pois nos traz a idéia da perca de tempo. Enquanto que o mal do sedentarismo físico é constantemente combatido, pouco se fala do sedentarismo mental. Porque, então o homem não pára? Fico com as duas respostas de Blaise Pascal: fuga da realidade e a busca da felicidade. Segue as palavras do grande filósofo francês:
Os homens que percebem sua condição naturalmente evitam, de todas as maneiras, o repouso, e tudo obram para encontrar a agitação […] o erro deles não seria buscar a agitação se só o fizessem por divertimento; o mal é que a procuram como se a posse das coisas que buscam devesse torná-los felizes à perfeição, e nisso sim, há motivo para classificar tal pretensão como vã […] [15].
Acho que o entretenimento une esse dois elementos perfeitamente, pois na proposta de fuga da realidade do entretenimento, o prazer e a felicidade são os alvos. A felicidade, pois, está fora da realidade.
A busca por felicidade é uma constante do homem. O mesmo Pascal diz: "Os homens todos, sem exceção, desejam ser felizes. Por distintos os meios que usam, tendem todos a esse propósito" [16]. Sobre a busca da felicidade, as palavras de C. S. Lewis são esclarecedoras: "A melhor coisa acerca da felicidade em si é que ela livra você de ficar pensando sobre felicidade" [17]. Nada mais estranho, pois, para um cristão do que buscar a felicidade. Já encontramos a pérola de grande valor (Mt. 13.46). Não vendemos nossa alma por prazeres transitórios de míseras trinta moedas; antes, doamos com gratidão todo nosso perfume, por que nada supera o valor do que temos – Jesus, nossa porção (cf. Mt. 26.6-16).
A Bíblia nos chama a aprender a "a viver contente em toda e qualquer situação" (Fp. 4:11) e a declarar com intrepidez: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". (Fp. 4:13). Ou seja, é nossa satisfação ou felicidade em Cristo que nos capacita a viver em dificuldade. Um cristão em busca de felicidade é uma contradição de termos. O cristão não busca a felicidade; ela chegou até ele em Cristo Jesus.
O mesmo pode-se dizer sobre a fuga da nossa própria condição. O entretenimento promete o esquecimento da pobreza da humanidade, da decomposição da doença, das contas, do patrão, dos relacionamentos fracassados, ad infinitum. É curioso ver cristãos seguindo a fila dos fugitivos; sentados na roda dos escarnecedores; bebendo na mesma fonte que entorpece os ímpios, e por conseguinte, eliminando qualquer descanso de sua agenda. Não fugimos da realidade. Antes, foi-nos revelado que ela é maior do que parece. Para o cristão, a nossa esperança em Cristo não se limita apenas a esta vida. Se assim fosse, seríamos os mais infelizes de todos os homens (1Co 15:19).
O tema "fuga da realidade" nos leva a um outro tema – o descanso. Enquanto foge, o homem não pára. Em resposta a esse quadro, muitos cristãos se valem do mandamento do sábado ou do sabatarianismo puritano para justificar o descanso. Aqui não temos espaço para discorrer sobre a lei mosaica (especificamente o quarto mandamento) e sua relação com o cristão. Seguem alguns princípios que sintetizam uma das obras mais completas sobre o quarto mandamento:
[1] O Shabbath não é considerado uma lei universal para toda humanidade, mas uma lei específica para Israel. Uma vez que era um sinal da aliança deve ser observado ao longo da duração dessa aliança. […] [2] Em momento algum os autores do Novo Testamento ou os textos dos três primeiros séculos da vida da igreja indicam que, de fato, o primeiro dia era considerado um dia de descanso. […] [3] Se, a fim de determinar um padrão normativo é preciso encontrar uma injunção neotestamentária, então a observância do primeiro dia da semana não se encaixa na categoria de costumes normativos e a prática apostólica não é, por si mesma, suficiente para construir uma ordem com autoridade apostólica […] O enfoque central do shabbath era a abstenção de trabalho, mas a observância do Dia do Senhor [domingo] se concentra na adoração ao Senhor ressurreto [18].
Em outras palavras, o desafio ao descanso não depende necessariamente de uma defesa à subordinação ao quarto mandamento. Como Paulo nos ensina, "os mandamentos de Deus, normativos para o cristão, não podiam ser equiparados ao código de Moisés"[19] (cf. 1Co. 9.19-27). Se por um lado a lei mosaica não é mandamento; por outro lado o cristão pode se valer da lei (código mosaico) como princípios úteis. Além disso, o bom senso exige uma parada. Se a questão é não ter tempo, a única solução é: exclua alguma coisa.
O autor de Hebreus também nos desafia a ampliarmos nosso entendimento sobre descanso. Ele nos ensina que todo descanso físico aponta para um descanso eterno que pode ser desfrutado agora pela fé (cf. Hb. 4).
5 ENTRETENIMENTO E PRAZER.
Para Bauman, os consumidores de hoje são "caçadores de emoções e colecionadores de experiências" [20]. Entretenimento não é somente a busca por distração, mas distração prazerosa. A questão aqui é: Qual, então, a relação entre prazer e a vida com Deus?
Um caminho geralmente seguido é o dualismo. O problema é que a dicotomia entre os prazeres sensoriais e espirituais é falaciosa e extremamente nociva. Por um lado ela ampara uma vida religiosa bem sucedida coexistindo com uma vida sem qualquer compromisso ético; por outro lado, a mesma dicotomia justifica um conflito ontológico que iguala maturidade espiritual com tristeza e sisudez. No primeiro caso, a separação entre as esferas elimina qualquer relação entre elas. Ou seja, uma coisa é religião outra é ética e espiritualidade. Pode-se ser imoral e ter uma vida espiritual bem sucedida ao mesmo tempo. No segundo caso, os dois elementos são tão distintos que se excluem reciprocamente. Não se pode ser espiritual e ter prazer ao mesmo tempo.
Eclesiastes desenvolve bem a questão. No seu segundo capítulo encontramos o velho Salomão revelando sua busca por alegria nos prazeres sensoriais. O primeiro verso revela, de cara, que o prazer não passa de "vaidade". Ou seja, é "vão", "absurdo" e "inútil". O verso 2 expressa bem a inutilidade dessa alegria por meio de uma pergunta retórica: "Do riso disse: é loucura; e da alegria: de que serve?" [21].
Contudo, ainda no mesmo capítulo, paradoxalmente, o autor nos assegura que Deus dá "prazer ao homem que lhe agrada" (2.26). No contexto imediato somos convocados ao prazer sensorial da bebida e da comida. Em suas palavras: "fazer com que nossa alma goze" (2.24). Ele também nos alerta para aproveitar a vida enquanto somos jovens (12.1). Incontestavelmente uma referência ao prazer sensorial. Em 9.7 diz: "Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras". O verso que segue exorta que nossas vestes se mantenham "alvas" e tenhamos ungüento em nossas cabeças – "símbolos de gozo e pureza" [22]. Prazer e santidade, portanto, não somente podem, mas devem andar juntos.
Em 2.25 ele afirma por meio de uma pergunta retórica: "separado deste [Deus], […] quem pode alegrar-se?". Para Salomão não deve haver dicotomia ou dualismo entre prazer e espiritualidade. Quando Deus é colocado de lado todo prazer se torna vão. O "prazer vão" referido no início do capítulo é o prazer separado de Deus. Este tipo de prazer é para os de coração dobre (Tg. 4.8). Risos sem Deus devem ser transformados em lágrimas e tristeza (Tg. 4.9). Delitzsch acrescenta:
Em seu desfrute o homem não é livre: não depende de sua própria vontade: o trabalho e o gozo dos seus frutos não possuem relação necessariamente direta; senão que o gozo é um dom que Deus transmite [23].
Pensadores como C. S. Lewis e Chesterton ecoam as palavras do sábio Salomão. Lewis afirma que "Deus não pode nos dá felicidade e paz à parte de Si mesmo, por que ela não está aí" [24]. G. K. Chesterton afirma:
O Cristianismo é a única estrutura que preservou o prazer do paganismo. Poderíamos imaginar crianças brincando na planície de um topo relvoso de alguma ilha elevada no meio do mar. Contanto que houvesse um muro em volta da beira do precipício, elas poderiam entregar-se ao jogo frenético e transformar o lugar na mais barulhenta creche [25].
A doutrina e a disciplina cristã são para Cherterton como muros; mas muros de um playground. Em suas palavras, "A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão" [26]. Como cristãos, não somos contra o prazer. Pelo contrário, entendemos que ele vem diretamente de Deus como um dom (Ec. 2.26). Aonde, pois, reside a ameaça do prazer? A resposta está no primeiro grande mandamento. Quando amamos mais os prazeres dados por Deus do que próprio Doador. Ou seja, quando o prazer é o alvo de nossa vida e o supremo bem de nossa existência. As palavras do apóstolo Paulo sintetizam o problema da nossa relação com o prazer: ser mais amigo dos prazeres do que de Deus (2Tm. 3.4).
O uso de verbos como "rir", "brincar", "alegrar", "dançar", "divertir" segue a lógica de Salomão. Todos eles são aplicados tanto negativamente quanto positivamente no registro bíblico. Em Êxodo 32 temos uma referência à "brincadeira". Essa passagem é melhor entendida à luz de 1Coríntios 10.7ss. Aqui o apóstolo Paulo denomina a "brincadeira" de "prostituição" (v.8). A mesma palavra é usada para descrever a alegria aprovada de Davi ao entrar com a arca em Jerusalém (1Cr. 15.29). Em 2 Samuel temos a mesma palavra para o mesmo evento. Em ambos os registro, a alegria de Davi é "perante o Senhor" (2Sm 6.5; 1Cr. 13.8). Aqui está o elemento diferenciador. Nosso prazer é de adorador; se dá diante de Deus – coram Deo.
O prazer do cristão, pois, não se dá a qualquer custo. Na galeria da fé em Hebreus nossos "heróis" são pessoas que preferiam ser maltratadas a usufruir dos prazeres do pecado (11.25). Todo prazer fora de Deus é transitório, irreal e destrutivo. O cristão entende que toda promessa de felicidade feita pelo pecado é na verdade uma grande farsa. E a nossa salvação inclui também a libertação da escravidão dos prazeres (Tt 3.3).
Ter uma palavra positiva sobre prazer está longe de ser uma garantia de conforto nessa vida. As palavras de C. S. Lewis são esclarecedoras: Não fui sempre um cristão. Não procurei a religião para me fazer feliz. Sempre soube que uma garrafa de Porto faria isso. Se quiser uma religião para fazer você se sentir realmente confortável, certamente não recomendo o cristianismo [27].
Em sua promessa de conforto e prazer, o entretenimento além de não proporcionar a cura verdadeira que restaura a alma e nossa condição diante de Deus, ainda nos ilude com o diagnóstico e o remédio errado. Michael Horton compara a promessa feita por muitas igrejas (idênticas ao do entretenimento) e a promessa do Evangelho:
A vitória prometida é muito maior do que o alívio do estresse, da tristeza, da solidão, da decepção e, até mesmo da doença que leva à morte: é a vitória sobre a morte eterna, por meio da ressurreição no último dia, ao compartilharmos da vitória de Cristo sobre o túmulo [28].
Concluímos assegurando que o prazer oferecido pelo entretenimento seguramente não é o mesmo desfrutado pelo cristão, pois esse não toma o prazer como solução ou fuga dos problemas, antes como desfrute consciente e pensante [não distraído] permeado de gratidão e adoração pela vida obtida por Cristo e regido pela ética bíblica do amor a Deus acima de tudo e todos. Decididamente "distração" ou "entretenimento" não descreve bem a relação do cristão com a alegria, pois seu regozijo não é despido de significado e consciência.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assunto tem muitas ramificações. Mas devido ao espaço,
concluiremos com algumas considerações sobre o efeito de uma cultura e/ou mentalidade de entretenimento em algumas áreas da vida.
6.1 Sofrimento: O autor de Eclesiastes nos assegura que "há tempo para chorar". Não é assim no mundo do entretenimento. O entretenimento não dá espaço ao sofrimento, nem muito menos o estimula. Na cultura da diversão-distraída, lágrimas, só de alegria.
As colocações de Eugene Peterson sobre a reação de Davi à morte de Saul e Jônatas são dignas de nota: A negação e a alienação são as prescrições padrão, por toda parte, da nossa cultura para se lidar com as perdas; juntas, essas prescrições têm praticamente destruído a saúde espiritual do nosso mundo. […] Se não nos ensinarem a "assumir nossa dor com lamentações", iremos pela vida afora acreditando que os nossos sentimentos imediatos é que determinam o nosso destino. […] A lamentação é nosso preventivo mais promissor [29].
Além de nos alertar para os benefícios do lamento/sofrimento, Eugene ainda nos lembra que setenta por cento dos salmos são de lamentações. E nos adverte que "Deixar de lamentar é deixar de se importar"[30]. A alegria cristã, pois, não elimina a amargura e a dor. "Nesse caso, a paciência e a perseverança dos santos não teriam nenhum valor"[31]. O grande pastor de Genebra nos lembra a relação intrínseca entre sofrimento e virtudes como a perseverança (Tg. 1.3). Para o entretenimento, todavia, a vida é um parque de diversão. Não é de se admirar que perseverança e paciência sejam virtudes cada vez mais raras em nossos dias.
A fuga da realidade ou a alienação do sofrimento me faz lembrar os dias do profeta Isaías: "Eles dizem aos videntes: Não tenhais visões; e aos profetas: Não profetizeis para nós o que é reto; dizei-nos coisas aprazíveis, profetizai-nos ilusões". (Is. 30.10).
6.2 Dinheiro: O entretenimento tem seu aspecto político, econômico e filosófico. Na Roma Antiga o aspecto político-ideológico sobrepujava o econômico. Os circos eram para os pobres. Hoje, quando falamos em entretenimento, falamos de uma atividade programada e paga. Consumismo e entretenimento andam de mãos dadas.
Há dez anos a indústria do entretenimento movimentava 500 bilhões de dólares por ano no mundo. Um só time de futebol pode faturar 1 bilhão de reais em somente um ano. Michael Wolf [32] revela que nos Estados Unidos o entretenimento superou setores de peso como o automobilístico e o siderúrgico. É fato, se gasta muito com entretenimento.
Não precisamos de uma pesquisa apurada para concluirmos que, contrabalanceado com os investimentos que os cristãos aplicam em missões, o entretenimento os supera em muito. O mesmo pode ser dito sobre os investimentos em literatura e educação. O resultado são pessoas endividadas tanto com o cartão de crédito quanto com Deus.
6.3 Mente Vazia: "O cristianismo foi projetado por Deus para ser uma fé 'pensante'"[33]. O cristão não foge da realidade e dos problemas numa busca por distração ilusória; antes, enche e exercita sua mente com as promessas reais do Senhor alimentando sua alma com a certeza da esperança. Como o salmista, meditamos de dia e de noite (Sl. 1.2; 119.97) nos preceitos (Sl. 119.15, 78), maravilhas (v.27) e decretos (v.48) de Deus.
Escrevendo sobre a influência da TV, John Benton, nos alerta que, com a pressão de entreter, "o que tende a acontecer é que tudo que a televisão toca ela torna trivial"[34], pois pensar com cuidado torna-se estafante. A pergunta aqui é: Que exercício piedoso pode-se fazer com sucesso enquanto estamos com nossas mentes anestesiadas?
6.4 As Relações Humanas: Entretenimento não pode alimentar relações interpessoais duradouras. Boa parte dele, na verdade, separa as pessoas. A cultura do entretenimento tende a transformar qualquer grupo de pessoas em um verdadeiro clube. E a cura para os problemas são diversões pueris e/ou "saidinhas para desopilar". Nossos relacionamentos são cada vez mais "fluidos"[35].
É lamentável testemunhar cônjuges cristãos resolvendo suas diferenças abandonando as etapas necessárias do confronto amoroso pela superficialidade das flores, bombons, cinema, viagens e jantares (Mt. 18). A cultura da distração não abre espaço para se resolver diferenças com conversas ungidas por lágrimas sinceras de orações de confissão, focadas no coração do problema e das pessoas e pautadas pela Palavra e o temor a Deus. O mesmo pode ser dito das relações entre os membros das igrejas locais. Hoje, jantares, cafés, encontros esportivos, dinâmicas e rodas de piadas são igualados à comunhão.
7 CONCLUSÃO:
Muito do que foi dito focou o coração. Falamos de postura de adoração, meditação e propósito. Portanto, o texto visa fazer com que você analise sua relação com o mundo do entretenimento; não a do seu próximo. Reconhecemos que uma mesma atividade pode ser tanto consciente e adoradora quanto distraída e "fugitiva". Cabe a cada um olhar para si mesmo. Que possamos nos alegrar em Deus e não "morrer de rir" como os entretidos
2 DEFINIÇÃO.
Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, "entreter" significa "distrair, para desviar atenção; divertir com recreação, servir de distração". O Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro o define como "iludir, suavizar, aliviar". Etimologicamente, "entreter" vem do latim intertenere, "ter entre"; refere-se, pois, ao intervalo entre duas ocupações. Porém, não é o mesmo que "ausência de ocupação", mas uma ocupação suave, ilusória, recreativa, que distrai.
Na análise de um vocábulo é imprescindível entendermos não somente o que ele significa, mas também o que não denota, pois deste modo evitamos ambigüidades. O lado negativo de "entreter" é o "não meditar". Ou seja, entreter não denota reflexão. Entreter não é somente divertir-se, mas divertir-se com distração, ou seja, trata-se de uma fuga e/ou uma ilusão. O substantivo "entretenimento" parece vir do espanhol com influência do inglês entertainment e surge como diferenciado de arte e cultura, pois, diferente desses, não exige esforço mental.
Reconheço que o significado de um vocábulo não vem de cima para baixo, como se todas as pessoas lessem dicionários antes de usar as palavras. Não se pode negligenciar o uso da palavra no cotidiano como fonte de significado. Portanto, reconhecemos que nem todas as pessoas usam a palavra "entretenimento" pensam exatamente no que aqui analisaremos. Muitos a usam como sinônimo de "divertimento", "alegria" e "lazer". O que não é nosso caso. A palavra mais próxima de entretenimento nessa obra é "distração". Segue nossa definição: Entretenimento é a atividade prazerosa que distrai e ilude movida por uma fuga da realidade opressora das preocupações existenciais.
3 ENTRETENIMENTO, ARTE E CULTURA.
Talvez uma das relações mais delicadas no entendimento do entretenimento está na sua relação com a cultura e a arte. A complexidade das atividades, efeitos, manifestações e estilos envolvidos no entretenimento é tão abrangente que não se pode categorizar atividades como essencialmente culturais e outras como essencialmente entretimento.
Historicamente o conceito de entretenimento surge como um diferenciador da cultura e da arte [3]. Particularmente acredito na distinção, porém, tal categorização não pode ser rápida e abrangente assim como acontece com os que defensores de uma visão unificada em que entretenimento é igualado com arte e cultura. Temos manifestações culturais na música da mesma maneira que temos entretenimento nessa mesma forma de arte. O mesmo pode ser dito sobre a literatura, pintura etc.
A questão aqui é: "Como diferenciar a arte e a cultura mais edificantes do entretenimento destinado à diversão e o lixo cultural mais grotesco que preenche espaços em programas de TV, revista, livros e jornais sensacionalistas ou simplesmente ordinários?"[4].
Gonzaga Trigo está certo ao considerar que "essa não é uma discussão fácil, e as tentativas de simplificá-la podem facilmente gerar argumentos autoritários ou elitistas" [5]. Por outro lado, ele é igualmente simplista quando opta pela unificação dos conceitos. A tendência de Trigo e outros de igualar cultura e entretenimento é melhor entendida à luz da cultura da tolerância, da inclusão e do relativismo pós-moderno que não permite que os estudiosos julguem, discriminem ou rotulem. No mundo pós-moderno, julgamento fica para os preconceituosos e elitistas.
O Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento (PNUD) reflete bem essa tendência unificadora. O Programa tem dificuldades em saber se filmes ou produtos audiovisuais são bens culturais ou simples entretenimento.
"O documento da ONU faz sérias ressalvas contra essa divisão, entendendo que cinema, televisão, rádio, e outras expressões da mídia eletrônica e imprensa são 'cultura'" [6].
O preço da unificação e/ou da igualdade de significado é alto. Ela iguala "Florentina", sucesso do Palhaço Tiririca, com as sinfonias de Beethoven; bem como não diferencia Dostoiévisk, John Bunyan e Cervantes das piadas sujas de alguns programas de comédia. Os defensores da unificação asseguram: "são igualmente formas de arte e cultura".
Um dos diferencias da cultura e o entretenimento é que o último é um espetáculo para a distração da massa [7]. E, diferente dos espetáculos dos circos romanos, hoje esse é direcionado por questões quase que exclusivamente mercadológicas. Entretenimento tem que vender; e vender muito.
Marilene Chauí nos alerta que a massificação ou a industrialização da cultura resultou no oposto proposto pela arte da cultura – o pensar. A razão é que a indústria cultural:
[…] define a Cultura como lazer e entretenimento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de pensamento significa trabalho da sensibilidade, da imaginação, da inteligência, da reflexão e da crítica não tem interesse, não "vende". Massificar é, assim, banalizar a expressão artística e intelectual. Em lugar de difundir e divulgar a Cultura, despertando interesse por ela, a indústria cultural realiza a vulgarização das artes e dos conhecimentos [8].
Entretenimento, portanto, é contrário à meditação e ao pensamento profundo. Assim, qualquer leitura (de palavras ou imagens) que não desafia nosso intelecto é entretenimento. Por outro lado, toda a vida cristã é descrita como um culto racional (Rm. 12.1). Entenda-se "racional" como "atitude interna" em contraste com uma adoração somente externa [9].
Continuamos com as colocações de Chauí:
Além disso, como a programação se dirige ao que já sabemos e já gostamos, e como toma a cultura sob a forma de lazer e entretenimento, a mídia satisfaz imediatamente nossos desejos porque não exige de nós atenção, pensamento, reflexão, crítica, perturbação de nossa sensibilidade e de nossa fantasia. Em suma, não nos pede o que as obras de arte e de pensamento nos pedem: trabalho sensorial e mental para compreendê-las, amá-las, criticá-las, superá-las. A Cultura nos satisfaz, se tivermos paciência para compreendê-la e decifrá-la. Exige maturidade. A mídia nos satisfaz porque nada nos pede, senão que permaneçamos sempre infantis [10].
As palavras de Chauí soam estranhas visto que arte e cultura hoje não estão diretamente ligadas à educação como pensavam os filósofos clássicos e os cristãos medievais bem como não preza pela originalidade como na modernidade, que entendia cultura como atitude contra o status quo. Hoje, "a arte tem como finalidade a própria arte" [11].
Contudo, não podemos nos iludir que a ausência de cultura ou desafio intelectual no entretenimento faz dele um terreno neutro. Há uma filosofia e uma ideologia manipulando o grande parque de diversão do entretenimento. O elogio do deboche, por exemplo, visto em grande parte da comédia brasileira, propõe um estilo de vida cínica. A propaganda é um exemplo claro de influência. Enquanto entretém, ela pode ridicularizar o gênero masculino como aquele que troca uma mulher bonita e dedicada pela TV por assinatura; ou como um porco que aproveita os feriados para não tomar banho; ou ainda como um "pau-mandado" sem qualquer bom senso. Ou seja, embora não nos leve a pensar, o entretenimento tem sim uma filosofia que a rege. É pobre, por que é levada pela onda do momento; mas ainda há filosofia.
Como entretenimento e cultura usam dos mesmos meios, seria simplista e reducionista demais alistar formas de entretenimento e de cultura. Enquanto forma elas se igualam; enquanto propostas diferem. Assim, não é que a música é entretenimento e a literatura é cultura ou vice-versa. Mas que o entretenimento usa da música assim como a cultura. Ambas podem ser danosas. Porém, um vôo monástico não é uma solução. Somos denominados sal e luz desse mundo (Mt. 5.13-14). "O melhor modo de repelir uma cosmovisão ruim é oferecendo uma boa, e os cristãos devem deixar de criticar a cultura e passar a criar cultura" [12].
4 ENTRETENIMENTO, TEMPO E DESCANSO.
O Moderno Dicionário Enciclopédico Brasileiro também define entretenimento como "ocupação". É simples de entender; enquanto estamos distraídos, ocupamos nosso tempo. Entretenimento não é o mesmo que descanso. Muito menos ócio contemplativo e/ou produtivo. É ocupação que distrai e ilude.
Aqui vale uma palavra sobre trabalho e entretenimento. Os números parecem apresentar uma matemática contraditória. Trabalha-se mais hoje do que no passado. Entretanto, do outro lado, o mercado do entretenimento só cresce. Como conciliar, então? O que acontece é que, com o pouco de tempo que se têm (feriados, happy hour, finais de semana), as pessoas se divertem com mais intensidade do que no passado. Além disso, o entretenimento tem ganhado tanto espaço que a divisão trabalho e entretenimento é, no final das contas, artificial. Há muito que o entretenimento invadiu a esfera do trabalho e da educação. Hoje, trabalha-se enquanto se distrai.
O fato é que "não estamos vivendo numa era contemplativa"
[13]. Vivemos a era de Marta (Lc 10.38-42); sempre ocupados e negligenciando as coisas mais importantes. Estamos sempre conectados a aparelhos eletrônicos (TV, computadores, celulares, games), fazendo e agindo. Horton descreve bem essa realidade:
Não se pode deixar de notar a inquietude do homem e da mulher ocidental contemporâneos, uma inquietude observada até mesmo (muitas vezes mais óbvia até) durante períodos de lazer. Por uma variedade de razões, muitos encherão esses momentos com tantas diversões, troféus, brinquedos e recreações que freqüentemente escutamos "Agora preciso de um descanso e recreações após as minhas férias" [14].
Hoje descanso é algo perturbador, pois nos traz a idéia da perca de tempo. Enquanto que o mal do sedentarismo físico é constantemente combatido, pouco se fala do sedentarismo mental. Porque, então o homem não pára? Fico com as duas respostas de Blaise Pascal: fuga da realidade e a busca da felicidade. Segue as palavras do grande filósofo francês:
Os homens que percebem sua condição naturalmente evitam, de todas as maneiras, o repouso, e tudo obram para encontrar a agitação […] o erro deles não seria buscar a agitação se só o fizessem por divertimento; o mal é que a procuram como se a posse das coisas que buscam devesse torná-los felizes à perfeição, e nisso sim, há motivo para classificar tal pretensão como vã […] [15].
Acho que o entretenimento une esse dois elementos perfeitamente, pois na proposta de fuga da realidade do entretenimento, o prazer e a felicidade são os alvos. A felicidade, pois, está fora da realidade.
A busca por felicidade é uma constante do homem. O mesmo Pascal diz: "Os homens todos, sem exceção, desejam ser felizes. Por distintos os meios que usam, tendem todos a esse propósito" [16]. Sobre a busca da felicidade, as palavras de C. S. Lewis são esclarecedoras: "A melhor coisa acerca da felicidade em si é que ela livra você de ficar pensando sobre felicidade" [17]. Nada mais estranho, pois, para um cristão do que buscar a felicidade. Já encontramos a pérola de grande valor (Mt. 13.46). Não vendemos nossa alma por prazeres transitórios de míseras trinta moedas; antes, doamos com gratidão todo nosso perfume, por que nada supera o valor do que temos – Jesus, nossa porção (cf. Mt. 26.6-16).
A Bíblia nos chama a aprender a "a viver contente em toda e qualquer situação" (Fp. 4:11) e a declarar com intrepidez: "Posso todas as coisas naquele que me fortalece". (Fp. 4:13). Ou seja, é nossa satisfação ou felicidade em Cristo que nos capacita a viver em dificuldade. Um cristão em busca de felicidade é uma contradição de termos. O cristão não busca a felicidade; ela chegou até ele em Cristo Jesus.
O mesmo pode-se dizer sobre a fuga da nossa própria condição. O entretenimento promete o esquecimento da pobreza da humanidade, da decomposição da doença, das contas, do patrão, dos relacionamentos fracassados, ad infinitum. É curioso ver cristãos seguindo a fila dos fugitivos; sentados na roda dos escarnecedores; bebendo na mesma fonte que entorpece os ímpios, e por conseguinte, eliminando qualquer descanso de sua agenda. Não fugimos da realidade. Antes, foi-nos revelado que ela é maior do que parece. Para o cristão, a nossa esperança em Cristo não se limita apenas a esta vida. Se assim fosse, seríamos os mais infelizes de todos os homens (1Co 15:19).
O tema "fuga da realidade" nos leva a um outro tema – o descanso. Enquanto foge, o homem não pára. Em resposta a esse quadro, muitos cristãos se valem do mandamento do sábado ou do sabatarianismo puritano para justificar o descanso. Aqui não temos espaço para discorrer sobre a lei mosaica (especificamente o quarto mandamento) e sua relação com o cristão. Seguem alguns princípios que sintetizam uma das obras mais completas sobre o quarto mandamento:
[1] O Shabbath não é considerado uma lei universal para toda humanidade, mas uma lei específica para Israel. Uma vez que era um sinal da aliança deve ser observado ao longo da duração dessa aliança. […] [2] Em momento algum os autores do Novo Testamento ou os textos dos três primeiros séculos da vida da igreja indicam que, de fato, o primeiro dia era considerado um dia de descanso. […] [3] Se, a fim de determinar um padrão normativo é preciso encontrar uma injunção neotestamentária, então a observância do primeiro dia da semana não se encaixa na categoria de costumes normativos e a prática apostólica não é, por si mesma, suficiente para construir uma ordem com autoridade apostólica […] O enfoque central do shabbath era a abstenção de trabalho, mas a observância do Dia do Senhor [domingo] se concentra na adoração ao Senhor ressurreto [18].
Em outras palavras, o desafio ao descanso não depende necessariamente de uma defesa à subordinação ao quarto mandamento. Como Paulo nos ensina, "os mandamentos de Deus, normativos para o cristão, não podiam ser equiparados ao código de Moisés"[19] (cf. 1Co. 9.19-27). Se por um lado a lei mosaica não é mandamento; por outro lado o cristão pode se valer da lei (código mosaico) como princípios úteis. Além disso, o bom senso exige uma parada. Se a questão é não ter tempo, a única solução é: exclua alguma coisa.
O autor de Hebreus também nos desafia a ampliarmos nosso entendimento sobre descanso. Ele nos ensina que todo descanso físico aponta para um descanso eterno que pode ser desfrutado agora pela fé (cf. Hb. 4).
5 ENTRETENIMENTO E PRAZER.
Para Bauman, os consumidores de hoje são "caçadores de emoções e colecionadores de experiências" [20]. Entretenimento não é somente a busca por distração, mas distração prazerosa. A questão aqui é: Qual, então, a relação entre prazer e a vida com Deus?
Um caminho geralmente seguido é o dualismo. O problema é que a dicotomia entre os prazeres sensoriais e espirituais é falaciosa e extremamente nociva. Por um lado ela ampara uma vida religiosa bem sucedida coexistindo com uma vida sem qualquer compromisso ético; por outro lado, a mesma dicotomia justifica um conflito ontológico que iguala maturidade espiritual com tristeza e sisudez. No primeiro caso, a separação entre as esferas elimina qualquer relação entre elas. Ou seja, uma coisa é religião outra é ética e espiritualidade. Pode-se ser imoral e ter uma vida espiritual bem sucedida ao mesmo tempo. No segundo caso, os dois elementos são tão distintos que se excluem reciprocamente. Não se pode ser espiritual e ter prazer ao mesmo tempo.
Eclesiastes desenvolve bem a questão. No seu segundo capítulo encontramos o velho Salomão revelando sua busca por alegria nos prazeres sensoriais. O primeiro verso revela, de cara, que o prazer não passa de "vaidade". Ou seja, é "vão", "absurdo" e "inútil". O verso 2 expressa bem a inutilidade dessa alegria por meio de uma pergunta retórica: "Do riso disse: é loucura; e da alegria: de que serve?" [21].
Contudo, ainda no mesmo capítulo, paradoxalmente, o autor nos assegura que Deus dá "prazer ao homem que lhe agrada" (2.26). No contexto imediato somos convocados ao prazer sensorial da bebida e da comida. Em suas palavras: "fazer com que nossa alma goze" (2.24). Ele também nos alerta para aproveitar a vida enquanto somos jovens (12.1). Incontestavelmente uma referência ao prazer sensorial. Em 9.7 diz: "Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe gostosamente o teu vinho, pois Deus já de antemão se agrada das tuas obras". O verso que segue exorta que nossas vestes se mantenham "alvas" e tenhamos ungüento em nossas cabeças – "símbolos de gozo e pureza" [22]. Prazer e santidade, portanto, não somente podem, mas devem andar juntos.
Em 2.25 ele afirma por meio de uma pergunta retórica: "separado deste [Deus], […] quem pode alegrar-se?". Para Salomão não deve haver dicotomia ou dualismo entre prazer e espiritualidade. Quando Deus é colocado de lado todo prazer se torna vão. O "prazer vão" referido no início do capítulo é o prazer separado de Deus. Este tipo de prazer é para os de coração dobre (Tg. 4.8). Risos sem Deus devem ser transformados em lágrimas e tristeza (Tg. 4.9). Delitzsch acrescenta:
Em seu desfrute o homem não é livre: não depende de sua própria vontade: o trabalho e o gozo dos seus frutos não possuem relação necessariamente direta; senão que o gozo é um dom que Deus transmite [23].
Pensadores como C. S. Lewis e Chesterton ecoam as palavras do sábio Salomão. Lewis afirma que "Deus não pode nos dá felicidade e paz à parte de Si mesmo, por que ela não está aí" [24]. G. K. Chesterton afirma:
O Cristianismo é a única estrutura que preservou o prazer do paganismo. Poderíamos imaginar crianças brincando na planície de um topo relvoso de alguma ilha elevada no meio do mar. Contanto que houvesse um muro em volta da beira do precipício, elas poderiam entregar-se ao jogo frenético e transformar o lugar na mais barulhenta creche [25].
A doutrina e a disciplina cristã são para Cherterton como muros; mas muros de um playground. Em suas palavras, "A alegria, que foi a pequena publicidade do pagão, é o gigantesco segredo do cristão" [26]. Como cristãos, não somos contra o prazer. Pelo contrário, entendemos que ele vem diretamente de Deus como um dom (Ec. 2.26). Aonde, pois, reside a ameaça do prazer? A resposta está no primeiro grande mandamento. Quando amamos mais os prazeres dados por Deus do que próprio Doador. Ou seja, quando o prazer é o alvo de nossa vida e o supremo bem de nossa existência. As palavras do apóstolo Paulo sintetizam o problema da nossa relação com o prazer: ser mais amigo dos prazeres do que de Deus (2Tm. 3.4).
O uso de verbos como "rir", "brincar", "alegrar", "dançar", "divertir" segue a lógica de Salomão. Todos eles são aplicados tanto negativamente quanto positivamente no registro bíblico. Em Êxodo 32 temos uma referência à "brincadeira". Essa passagem é melhor entendida à luz de 1Coríntios 10.7ss. Aqui o apóstolo Paulo denomina a "brincadeira" de "prostituição" (v.8). A mesma palavra é usada para descrever a alegria aprovada de Davi ao entrar com a arca em Jerusalém (1Cr. 15.29). Em 2 Samuel temos a mesma palavra para o mesmo evento. Em ambos os registro, a alegria de Davi é "perante o Senhor" (2Sm 6.5; 1Cr. 13.8). Aqui está o elemento diferenciador. Nosso prazer é de adorador; se dá diante de Deus – coram Deo.
O prazer do cristão, pois, não se dá a qualquer custo. Na galeria da fé em Hebreus nossos "heróis" são pessoas que preferiam ser maltratadas a usufruir dos prazeres do pecado (11.25). Todo prazer fora de Deus é transitório, irreal e destrutivo. O cristão entende que toda promessa de felicidade feita pelo pecado é na verdade uma grande farsa. E a nossa salvação inclui também a libertação da escravidão dos prazeres (Tt 3.3).
Ter uma palavra positiva sobre prazer está longe de ser uma garantia de conforto nessa vida. As palavras de C. S. Lewis são esclarecedoras: Não fui sempre um cristão. Não procurei a religião para me fazer feliz. Sempre soube que uma garrafa de Porto faria isso. Se quiser uma religião para fazer você se sentir realmente confortável, certamente não recomendo o cristianismo [27].
Em sua promessa de conforto e prazer, o entretenimento além de não proporcionar a cura verdadeira que restaura a alma e nossa condição diante de Deus, ainda nos ilude com o diagnóstico e o remédio errado. Michael Horton compara a promessa feita por muitas igrejas (idênticas ao do entretenimento) e a promessa do Evangelho:
A vitória prometida é muito maior do que o alívio do estresse, da tristeza, da solidão, da decepção e, até mesmo da doença que leva à morte: é a vitória sobre a morte eterna, por meio da ressurreição no último dia, ao compartilharmos da vitória de Cristo sobre o túmulo [28].
Concluímos assegurando que o prazer oferecido pelo entretenimento seguramente não é o mesmo desfrutado pelo cristão, pois esse não toma o prazer como solução ou fuga dos problemas, antes como desfrute consciente e pensante [não distraído] permeado de gratidão e adoração pela vida obtida por Cristo e regido pela ética bíblica do amor a Deus acima de tudo e todos. Decididamente "distração" ou "entretenimento" não descreve bem a relação do cristão com a alegria, pois seu regozijo não é despido de significado e consciência.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O assunto tem muitas ramificações. Mas devido ao espaço,
concluiremos com algumas considerações sobre o efeito de uma cultura e/ou mentalidade de entretenimento em algumas áreas da vida.
6.1 Sofrimento: O autor de Eclesiastes nos assegura que "há tempo para chorar". Não é assim no mundo do entretenimento. O entretenimento não dá espaço ao sofrimento, nem muito menos o estimula. Na cultura da diversão-distraída, lágrimas, só de alegria.
As colocações de Eugene Peterson sobre a reação de Davi à morte de Saul e Jônatas são dignas de nota: A negação e a alienação são as prescrições padrão, por toda parte, da nossa cultura para se lidar com as perdas; juntas, essas prescrições têm praticamente destruído a saúde espiritual do nosso mundo. […] Se não nos ensinarem a "assumir nossa dor com lamentações", iremos pela vida afora acreditando que os nossos sentimentos imediatos é que determinam o nosso destino. […] A lamentação é nosso preventivo mais promissor [29].
Além de nos alertar para os benefícios do lamento/sofrimento, Eugene ainda nos lembra que setenta por cento dos salmos são de lamentações. E nos adverte que "Deixar de lamentar é deixar de se importar"[30]. A alegria cristã, pois, não elimina a amargura e a dor. "Nesse caso, a paciência e a perseverança dos santos não teriam nenhum valor"[31]. O grande pastor de Genebra nos lembra a relação intrínseca entre sofrimento e virtudes como a perseverança (Tg. 1.3). Para o entretenimento, todavia, a vida é um parque de diversão. Não é de se admirar que perseverança e paciência sejam virtudes cada vez mais raras em nossos dias.
A fuga da realidade ou a alienação do sofrimento me faz lembrar os dias do profeta Isaías: "Eles dizem aos videntes: Não tenhais visões; e aos profetas: Não profetizeis para nós o que é reto; dizei-nos coisas aprazíveis, profetizai-nos ilusões". (Is. 30.10).
6.2 Dinheiro: O entretenimento tem seu aspecto político, econômico e filosófico. Na Roma Antiga o aspecto político-ideológico sobrepujava o econômico. Os circos eram para os pobres. Hoje, quando falamos em entretenimento, falamos de uma atividade programada e paga. Consumismo e entretenimento andam de mãos dadas.
Há dez anos a indústria do entretenimento movimentava 500 bilhões de dólares por ano no mundo. Um só time de futebol pode faturar 1 bilhão de reais em somente um ano. Michael Wolf [32] revela que nos Estados Unidos o entretenimento superou setores de peso como o automobilístico e o siderúrgico. É fato, se gasta muito com entretenimento.
Não precisamos de uma pesquisa apurada para concluirmos que, contrabalanceado com os investimentos que os cristãos aplicam em missões, o entretenimento os supera em muito. O mesmo pode ser dito sobre os investimentos em literatura e educação. O resultado são pessoas endividadas tanto com o cartão de crédito quanto com Deus.
6.3 Mente Vazia: "O cristianismo foi projetado por Deus para ser uma fé 'pensante'"[33]. O cristão não foge da realidade e dos problemas numa busca por distração ilusória; antes, enche e exercita sua mente com as promessas reais do Senhor alimentando sua alma com a certeza da esperança. Como o salmista, meditamos de dia e de noite (Sl. 1.2; 119.97) nos preceitos (Sl. 119.15, 78), maravilhas (v.27) e decretos (v.48) de Deus.
Escrevendo sobre a influência da TV, John Benton, nos alerta que, com a pressão de entreter, "o que tende a acontecer é que tudo que a televisão toca ela torna trivial"[34], pois pensar com cuidado torna-se estafante. A pergunta aqui é: Que exercício piedoso pode-se fazer com sucesso enquanto estamos com nossas mentes anestesiadas?
6.4 As Relações Humanas: Entretenimento não pode alimentar relações interpessoais duradouras. Boa parte dele, na verdade, separa as pessoas. A cultura do entretenimento tende a transformar qualquer grupo de pessoas em um verdadeiro clube. E a cura para os problemas são diversões pueris e/ou "saidinhas para desopilar". Nossos relacionamentos são cada vez mais "fluidos"[35].
É lamentável testemunhar cônjuges cristãos resolvendo suas diferenças abandonando as etapas necessárias do confronto amoroso pela superficialidade das flores, bombons, cinema, viagens e jantares (Mt. 18). A cultura da distração não abre espaço para se resolver diferenças com conversas ungidas por lágrimas sinceras de orações de confissão, focadas no coração do problema e das pessoas e pautadas pela Palavra e o temor a Deus. O mesmo pode ser dito das relações entre os membros das igrejas locais. Hoje, jantares, cafés, encontros esportivos, dinâmicas e rodas de piadas são igualados à comunhão.
7 CONCLUSÃO:
Muito do que foi dito focou o coração. Falamos de postura de adoração, meditação e propósito. Portanto, o texto visa fazer com que você analise sua relação com o mundo do entretenimento; não a do seu próximo. Reconhecemos que uma mesma atividade pode ser tanto consciente e adoradora quanto distraída e "fugitiva". Cabe a cada um olhar para si mesmo. Que possamos nos alegrar em Deus e não "morrer de rir" como os entretidos
Deus vos abençoe,
Pr. Paulo Tomé
Um brinde musical para todos irmãos e irmãs:
Eu Escolho Te Louvar - Mariana Valadão
Existe forma melhor de encontrar a real felicidade do que quando louvamos a nosso Senhor ?
Adorar ao Cristo nos deixa feliz mais do que qualquer 'balada' ou aparelho celular...
ric+JESUS!
Vosso irmão e servo em Cristo Jesus
ric+JESUS!
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Que Jesus vos ilumine e o Espírito Santo de Deus lhe dê sabedoria!